Pregão eletrônico e os serviços de engenharia

Embora já se tenha alardeado aos quatro cantos a inadmissibilidade do uso de pregão eletrônico para serviços especializados de engenharia, inclusive com decisões judiciais, ainda é comum órgãos e entidades públicas abrirem concorrência nesta modalidade para contratação de serviços especializados de engenharia.

Inicialmente, vê-se com preocupação o desconhecimento dos administradores públicos sobre essa inadmissibilidade e sobre o que se entende por serviços de engenharia. Isso se torna temerário, já que se a contratação se der por essa modalidade, ou pela da concorrência predatória, haverá prejuízo significativo para o setor público, e por consequência, para toda a sociedade. Como, aliás, tem-se visto em muitas situações que se tornam públicas.

Salvo os poucos casos dos serviços “comuns” de engenharia, a grande maioria se refere a serviços que têm significativa, ou a quase totalidade, de parcela de desenvolvimento de natureza intelectual. Portanto, não se pode mensurá-los, nem qualificá-los de acordo com os métodos convencionais de avaliação de propostas – para as quais, no fundo, é sabido que só se vai olhar para o preço!

É imprescindível ter o conceito elementar de que para serviços de natureza intelectual não é possível fazer a famosa “equalização de propostas” (ver artigo “Ervas daninhas”, neste blog).

Por mais bem elaborado que seja o escopo de contratação e as demais condições do edital, em um processo de contratação de serviços de engenharia simplesmente não se pode mensurar a capacidade técnica de cada profissional convidado. E é justamente essa capacidade que vai influenciar sobremaneira os resultados obtidos. Ou será que esses administradores imaginam que a aquisição de serviços de engenharia pode seguir o mesmo rito da compra de sacos de lixo?

Em grande parte dos casos, essas entidades públicas solicitam que a empresa participante do certame forneça Certidões de Acervo Técnico (CAT) dos profissionais que serão responsáveis pelo serviço, como forme de garantir a qualidade do serviço a ser prestado. Essas certidões são emitidas pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) a pedido do profissional.

No entanto, tais certidões jamais indicam a “qualificação” do profissional para o serviço em questão. No máximo, uma CAT demonstra que, à época da realização do serviço objeto da CAT e de sua solicitação, o profissional estava em dia com o Crea e apresentou a documentação necessária para a sua emissão. Mas, qualificação, em nenhum momento é medida ou avaliada. Não é o objetivo de uma CAT, e nem poderia ser!

O Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) tem sido árduo combatente dessas ilegalidades, com diversos casos bem sucedidos no judiciário, obtendo suspensão de pregões envolvendo contratação de serviços de engenharia.

Fundamentação legal

Serviços de engenharia caracterizados como serviços especializados (que é a grande maioria), não podem ser contratados pela modalidade pregão eletrônico. O pregão aplica-se somente para aquisição de bens e serviços “comuns”.

Seguem as principais argumentações legais, em ordem cronológica de publicação.

1) Decreto Federal nº 3.555 de 08/08/2000

Art. 5º  A licitação na modalidade de pregão não se aplica às contratações de obras e serviços de engenharia, bem como às locações imobiliárias e alienações em geral, que serão regidas pela legislação geral da Administração.

2) Lei Federal nº 10.520 de 17/07/2002

Art. 1º  Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.

Parágrafo único.  Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.

3) Decreto Federal nº 5.450 de 31/05/2005

Art. 1º A modalidade de licitação pregão, na forma eletrônica, de acordo com o disposto no § 1º do art. 2º da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, destina-se à aquisição de bens e serviços comuns, no âmbito da União, e submete-se ao regulamento estabelecido neste Decreto.

Art. 6º A licitação na modalidade de pregão, na forma eletrônica, não se aplica às contratações de obras de engenharia, bem como às locações imobiliárias e alienações em geral.

4) Resolução do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) nº 1116 de 26/04/2019

Art. 1º Estabelecer que as obras e os serviços de Engenharia e de Agronomia, que exigem habilitação legal para sua elaboração ou execução, com a emissão da Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, são serviços técnicos especializados.

  • 1° Os serviços são assim caracterizados por envolverem o desenvolvimento de soluções específicas de natureza intelectual, científica e técnica, por abarcarem risco à sociedade, ao seu patrimônio e ao meio ambiente, e por sua complexidade, exigindo, portanto, profissionais legalmente habilitados e com as devidas atribuições.
  • 2° As obras são assim caracterizadas em função da complexidade e da multiprofissionalidade dos conhecimentos técnicos exigidos para o desenvolvimento do empreendimento, sua qualidade e segurança, por envolver risco à sociedade, ao seu patrimônio e ao meio ambiente, e por demandar uma interação de concepção físico-financeira que determinará a otimização de custos e prazos, exigindo, portanto, profissionais legalmente habilitados e com as devidas atribuições.

5) Decreto Fed. nº 10.024/2019:

Art. 1º Este Decreto regulamenta a licitação, na modalidade de pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, e dispõe sobre o uso da dispensa eletrônica, no âmbito da administração pública federal.

Art. 3º  Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

II – bens e serviços comuns – bens cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações reconhecidas e usuais do mercado;

III – bens e serviços especiais – bens que, por sua alta heterogeneidade ou complexidade técnica, não podem ser considerados bens e serviços comuns, nos termos do inciso II;

VIII – serviço comum de engenharia – atividade ou conjunto de atividades que necessitam da participação e do acompanhamento de profissional engenheiro habilitado, nos termos do disposto na Lei nº 5.194, de 24 de dezembro de 1966, e cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pela administração pública, mediante especificações usuais de mercado;

Art. 4º  O pregão, na forma eletrônica, não se aplica a:

I – contratações de obras;

II – locações imobiliárias e alienações; e

III – bens e serviços especiais, incluídos os serviços de engenharia enquadrados no disposto no inciso III do caput do art. 3º.

Decisões judiciais

a) STJ anula pregão para fiscalização de obra

Os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitaram, por unanimidade, recurso da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que manteve sentença em mandado de segurança impetrado pelo Sinaenco para anulação do pregão eletrônico nº 009/2014. Na ação, o Sinaenco alegou que objeto do certame, contratação de serviços de fiscalização de obras, não poderia ser contratado por pregão e por menor preço.

b) Sinaenco obtém liminar para suspender pregão na Infraero

A 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro suspendeu o pregão eletrônico nº 12/ADRJ/SBRJ/2013, da Infraero. O objeto dessa licitação era a contratação de serviços técnicos especializados de engenharia de gerenciamento, assessoria e apoio à fiscalização das obras e serviços de restauração dos pavimentos em um aeroporto. Relata a magistrada em sua decisão: “(…) Qualquer erro de execução trará risco à segurança e vida dos usuários. (…) Diante da importância e complexidade dos serviços, (…) o contratado não pode ser selecionado pelo menor preço (como ocorre no pregão) mas sim por critério de melhor técnica ou técnica e preço. A capacidade técnica do contratado será elemento fundamental para alcançar a qualidade e segurança que se espera no empreendimento”.

c) TJ Federal anula pregão no DNIT para contratação de projeto

Sinaenco obtém liminar e, posteriormente, anulação do Pregão Eletrônico nº 323/2012, promovido pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), que visava a contratação de projeto executivo para edifício sede do órgão. Em seu despacho, o magistrado cita: “Para as contratações que exigem conhecimentos técnicos especializados, é necessária a realização de licitação pela modalidade técnica e preço, considerando que o interesse da Administração é o melhor serviço pelo preço mais adequado”.

d) Até o TCU confirma não ser aplicável pregão para contratação de obras

Sob o aspecto da modalidade de contratação, esta Corte de Contas, recentemente, por meio do Acórdão 1.540/2014 – Plenário, em processo de solicitação do Congresso Nacional que tratou, dentre outras questões, da utilização do pregão em obras de simples execução, se manifestou no sentido de que “não se aplica a modalidade pregão à contratação de obras de engenharia, locações imobiliárias e alienações, sendo permitida nas contratações de serviços comuns de engenharia (Súmula TCU 257/2010)

Conclusões

No Decreto nº 10.024/2019, que é o mais recente, por mais que se tentasse enquadrar serviços de engenharia como “serviços comuns” é visível ainda a lacuna existente. E que não será resolvida, pelas próprias características da engenharia. Afinal, como definir objetivamente a redação: cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pela administração pública, mediante especificações usuais de mercado”.

Volta-se a insistir que são poucos (senão raros) os serviços comuns de engenharia. Os que são contratados rotineiramente não se enquadram como serviços comuns, tais como: projeto, planejamento, consultoria, assessoria, curso, treinamento, perícia, avaliação, execução, fiscalização e gerenciamento de obra, entre outros.

O jurista Marçal Justen Filho muito bem apresenta o entendimento de que o bem ou serviço é comum quando a Administração não formula exigências específicas para uma contratação determinada, mas se vale dos bens ou serviços tal como disponíveis no mercado (Comentários à Legislação do Pregão Comum e Eletrônico – 4a ed., São Paulo: Renovar, 2005, p. 26). Cita ainda que bem ou serviço comum é aquele que se apresenta sob identidade e características padronizadas e que se encontra disponível a qualquer tempo, num mercado próprio. Por isso, a regra é que obras e serviços de engenharia não se enquadrem no âmbito de “bens e serviços comuns” (Ob. cit., p. 30).

 

Autor: Paulo E. Q. M. Barreto

Engenheiro eletricista, membro do CB-03/ABNT, coordenador da Divisão de Instalações Elétricas do Instituto de Engenharia, ex-Conselheiro do Crea-SP, consultor e diretor da Barreto Engenharia. www.barreto.eng.br